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O Brasil ainda é referência mundial nas ações para a prevenção e erradicação do trabalho infantil?

A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), construída durante a Assembleia Geral realizada em setembro de 2015, prevê 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com metas específicas a cada um deles. Entre eles, tem-se o de número 8, que trata do trabalho decente e crescimento sustentável, o que se justifica plenamente, eis que não há falar em desenvolvimento sustentável sem que se tenha como realidade a concretização do trabalho decente.[1]

 

Nesse contexto, é importante registrar que o ODS 8  referido é composto de metas, entre elas a 8.7, que dispõe: “Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, prevendo para 2025 a data limite para acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas”.[2]

 

No Brasil, tinha-se como realidade nos anos 90 mais de 9 milhões de crianças e adolescentes envolvidos no trabalho precoce, com prejuízos a sua formação e pleno desenvolvimento. Naquela década, foram adotadas ações para o enfrentamento dessa mazela, considerando-se a consagração pela Constituição de 1988 da doutrina da proteção integral de toda criança e adolescente, assim como o compromisso internacional com o tema, assumido pelo país com a assinatura, e posterior ratificação, da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, emitida em 1989.

 

Naquele período, a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego foi decisiva no enfrentamento da questão, com participação decisiva na criação, em 1994, do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI)[3]. O então Ministério da Assistência Social também desempenhou papel relevante nesse enfrentamento, com a criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI)[4], devendo-se ainda referir à atuação do Ministério Público do Trabalho, assim como da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência, que davam ao Fórum suporte econômico e técnico.

 

Com isso, avançou-se nas ações de combate ao trabalho infantil, sendo possível terminar a década com sensível diminuição no contingente de mais de nove milhões de crianças e adolescentes no trabalho precoce e irregular, chegando-se a um patamar de pouco mais de cinco milhões em 2004.

 

Embora ainda significativo esse número, com os danos sensíveis e muitas vezes irreversíveis em suas consequências nas crianças e adolescentes encontrados nessas condições, o avanço foi um ganho, passando o país a ser referência mundial no tema.

 

Deve-se enfatizar a respeito que o trabalho em parceria e em articulação foi fundamental para a eficácia das ações de enfrentamento específicas. Essa parceria foi estimulada e mantida pela atuação do FNPETI, cujas plenárias foram decisivas para discutir e definir as ações necessárias nesse sentido, assim como avaliar o momento e reorganizar, se necessário, a atuação de enfrentamento, por reunir diversas entidades comprometidas com a questão.

 

O início de 2000 teve como marco nesse cenário a ratificação da Convenção 182 da OIT [5]sobre as piores formas de trabalho, com o desafio de implementar as políticas públicas necessárias para a sua erradicação.

 

Outro marco foi a ratificação, em 2002, da Convenção 138 da OIT sobre a idade limite para o trabalho, aprovada em 1973, e que tramitava no Congresso sem qualquer evolução nos procedimentos para tanto. Importante registrar que a promulgação da Emenda Constitucional nº 20, de 2000, que modificou o inciso do art. 7º da Carta Magna, para estabelecer em 16 (dezesseis) anos a idade limite para o trabalho, com exceção da aprendizagem, a partir dos 14 (quatorze) anos, foi decisiva para que a ratificação se desse sem qualquer ressalva.

 

O Fórum Nacional teve uma atuação importante nesse período, ao definir em plenárias convocadas para esse fim as ações estratégicas à erradicação e prevenção do trabalho infantil, o que culminou no documento intitulado Diretrizes para Formulação de uma Política Nacional de Combate ao Trabalho Infantil, aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).[6]

 

Esse arcabouço foi a referência para a elaboração de um documento com ações e prazos de realização pela Comissão Especial do Conselho dos Direitos da Pessoa Humana (CPDH)[7], constituída para conhecer e acompanhar denúncias de violência no campo, exploração do trabalho forçado e escravo e exploração do trabalho infantil.

 

Essa Comissão encerrou seus trabalhos com a finalização de documentos para enfrentamento do trabalho em condições análogas a de escravo e do trabalho infantil. O documento relativo ao trabalho infantil resultou na criação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil - CONAETI[8], composta de representantes de vários Ministérios, como, o do Trabalho e Emprego, que a presidiu, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Educação, da Agricultura, entre outros, assim como de representantes das entidades nacionais de trabalhadores e de empregadores, tendo, ainda, como integrantes o FNPETI, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Organização Internacional do Trabalho(OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (UNICEF).

 

A CONAETI discutiu e aprovou o documento, com as complementações necessárias, consolidando o primeiro Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente, encaminhado ao então Ministro do Trabalho e Emprego, que o publicou, constituindo um marco importante na atuação do Brasil na área.[9]

 

A Comissão passou a ser referência na questão, haja vista sua formação quadripartite, representando, inclusive, um avanço em relação à discussão tripartite sempre proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) nas Convenções e Recomendações aprovadas pelo órgão. [10]

 

Suas atribuições, previstas na Portaria nº 365/2002, além de elaborar a proposta do Plano em questão, são: verificar a conformidade das Convenções 138 e 182 com outros diplomas legais vigentes, elaborando propostas para a regulamentação de ambas e para as adequações legislativas porventura necessárias; propor mecanismos para o monitoramento da aplicação da Convenção 182 e coordenar, monitorar e avaliar a execução do Plano referido, competindo-lhe apresentar, até o mês de dezembro, propostas de modificações (art. 1º). 

 

Com relação à implementação da Convenção 182, a CONAETI instituiu Subcomissão para Análise e Definição das Piores Formas de Trabalho Infantil, que propôs o texto que originou o Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que define a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), de acordo com o disposto nos artigos 3º, "d", e 4º da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho. Referida Comissão foi composta de representantes governamentais, representantes de trabalhadores e empregadores, do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), do Ministério Público do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho.

 

A Comissão, portanto, detinha legitimidade, não apenas porque criada pela CONAETI, como também por sua composição, eclética, atingindo a amplitude necessária para a definição do documento, imprescindível para a plena aplicação da Convenção. Ademais, contou com o apoio técnico de profissionais da área de segurança e medicina do trabalho do, então, Ministério do Trabalho e Emprego.

 

Referida lista tem cerca de 96 atividades consideradas prejudiciais à saúde, à moralidade e ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. Cada uma delas traz os riscos e consequências decorrentes do seu exercício.

 

Ela está em vigor, portanto, há 11 (onze) anos, o que evidencia sua atualidade e importância no tocante ao combate das piores formas de trabalho infantil. Nada nesse período indicou a necessidade de sua revisão, seja para acréscimo, seja para diminuição das atividades que a integram.

 

Assim, qualquer alteração na lista deve decorrer de um intenso trabalho de pesquisa e avaliação que demonstre a pertinência da retirada de alguma atividade e/ou de acréscimo, como já exposto. Não cabe um simples procedimento de revisão, dado aos parceiros necessariamente envolvidos nesse processo, assim como as premissas lançadas na Convenção 182 e na Recomendação correspondente (de nº 190).

 

Paralelamente, a CONAETI criou a Subcomissão de Revisão do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador, cujos trabalhos resultaram na sua segunda edição, com texto aprovado pelo CONANDA, referente ao período 2011-2015, publicado pela própria CONAETI.

 

Registre-se que, em 2007, houve a primeira avaliação dos resultados obtidos pelo primeiro Plano, que indicou como executadas no prazo previsto apenas a metade das 133 ações nele previstas.        

 

Em dezembro de 2018, a CONAETI lançou o III Plano de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente[11], com as ações para tanto, atualizadas a partir da avaliação feita dos planos anteriores, apresentando-se, portanto, de suma importância num momento em que o Brasil ainda tem um número significativo de crianças e adolescentes envolvidos no trabalho precoce e irregular.[12]

 

O Plano está estruturado a partir dos seguintes tópicos: conceito de trabalho infantil; diagnóstico, com análise situacional do trabalho infantil no Brasil; balanço do 2º Plano; enfoque da situação – objetivo; eixos estratégicos; matriz estratégica e operacional;  monitoramento e avaliação; nota metodológica sobre o seu processo de revisão; instrumental para seu monitoramento e avaliação.

 

Importante, ainda, referir que, na análise contextual que faz, coloca como situação problema central em 2019 “a permanente violação de direitos das crianças e adolescentes concretizada na exploração do TI e em decorrência deste”.

 

Em contraposição, apresenta como situação-objetivo a “aceleração da eliminação do trabalho infantil com ações que alcancem todas as faixas etárias, tanto em atividades agrícolas quanto em não agrícolas, e garantia do acesso à escola de qualidade, inclusive para o adolescente trabalhador em processo de aprendizagem”.[13]

 

Nessa perspectiva, a CONAETI apresenta-se imprescindível para o monitoramento e avaliação das ações propostas de combate ao trabalho infantil, atuação esta interrompida, com prejuízos no cumprimento pelo país do compromisso assumido perante a comunidade internacional, de erradicar o trabalho infantil, em especial, em suas piores formas.

 

De início, tem-se como prejudicada a priorização do tema nas agendas políticas e sociais do país, com prejuízo para a criação, aperfeiçoamento e implementação de mecanismos de combate à problemática, com prioridade das piores formas de trabalho infantil, que compõem dois dos eixos estratégicos do Plano. Em consequência, os demais eixos perdem em força e condições de realização.

 

Assim, apresenta-se preocupante a extinção da CONAETI, haja vista a revogação das Portarias que a criaram, pela Portaria nº 972, de 21.08.19, do Secretário Especial da Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, sem qualquer explicação, o que implica na desmobilização dos entes públicos e entidades que a integravam, desarticulando todo um trabalho realizado até então e impedindo a plena vigência do novo Plano de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente, com as ações necessárias para tanto, haja vista os dados e informações trazidos pela PNAD Contínua de 2016.

 

Com isso, cria-se um vácuo nesta seara, com a desarticulação da atuação em parceria e em rede obtida até então, sem respostas para as reivindicações que se impõem em face da realidade trazida e documentada na PNAD em questão, haja vista o Plano que fica no papel, sem qualquer concretização nesse sentido. Coloca-se assim em xeque as ações discriminadas no documento, sem qualquer perspectiva de execução e monitoramento, em prejuízo de grupos vulneráveis e da sociedade como um todo.

 

O IBGE está para lançar uma nova PNAD Contínua sobre o tema que, certamente, não trará elementos para a avaliação desse contexto, mas nos trará dados concretos sobre a situação atual de crianças e adolescentes envolvidos no trabalho precoce, com a agravante de realização conjuntamente de tarefas domésticas, em prejuízo da sua escolaridade e da sua inserção no mercado de trabalho em condições de competitividade, mantendo-se, portanto, em situação vulnerável e precária.

 

Como exposto, tem-se ainda um contingente significativo de crianças e adolescentes envolvidos no trabalho precoce, com prejuízo ao seu pleno desenvolvimento, sem garantia de seus direitos básicos, enumerados pelo art. 227 da Carta Política, que compõem a proteção integral que lhes é devida.

 

À parte o descumprimento de normas constitucionais, tem-se o descumprimento das Convenções antes nomeadas, da ONU e da OIT, ratificadas pelo Brasil, do que sobressai o descumprimento pelo país do compromisso firmado perante a comunidade internacional nesse mister, no qual se inserem os objetivos da ONU para o Milênio que, em se tratando do trabalho infantil, aponta, como exposto, o ano 2025 como marco a ser observado pelos países.

 

O pior, no entanto, é a possibilidade de recrudescimento dos números de crianças e adolescentes envolvidos no trabalho infantil, sem direitos e, portanto, sem a garantia da proteção integral que lhes é devida, como consagrado na Constituição de 1988.  

 

 

[1] Esses ODS substituíram os oito ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) estabelecidos pela ONU após a Cúpula do Milênio das Nações Unidas em 2000.

 

[2] Veja-se que havia as metas de eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2015 e de erradicar a totalidade do trabalho infantil até 2020, assumidas pelo Brasil e pelos demais países signatários do documento “Trabalho Decente nas Américas: Uma agenda Hemisférica, 2006-2015”, apresentado na XVI Reunião Regional Americana da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ocorrida em 2006. Todavia, essa meta não foi cumprida. Tem-se, então, como meta mundial, instituída pela ONU em 2015, a que está inserida no referido ODS, que constitui a meta nº 17.

[3] Criado em 1994, ficando então sediado no Ministério do Trabalho e Emprego.

[4] O PETI foi lançado em 1996 pelo Governo Federal, com o principal objetivo retirar crianças e adolescentes de 07 a 14 anos de idade da situação de trabalho, com ações que envolvem a jornada ampliada e incentivo financeiro para manutenção da criança na escola.

[5] A Convenção foi aprovada pela OIT na Assembleia Geral de junho de 1999, tendo como documento de explicitação de suas disposições a Recomendação 190.

[6] Órgão deliberativo e controlador da política de promoção, proteção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil brasileira.

[7] Instituída pela Resolução nº 5, de 28.01.2002 do CDPH.

[8] Portaria MTE nº 365, de 12.09.2002, alterada pela Portaria nº 952, de 08.07.2003.

[9] Publicado em 2004, pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Edição e distribuição pela Secretaria de Inspeção do Trabalho.

[10] Essa configuração quadripartite passou a constituir um parâmetro essencial na discussão e proposição de ações e políticas públicas para a prevenção e erradicação do trabalho infantil. A composição do FNPETI sempre foi quadripartite, assim como a da CONAETI, desde sua criação. O documento do FNPETI que trata das diretrizes para a formulação de uma política nacional de combate ao trabalho infantil tem um capitulo a respeito, que traz o seguinte trecho: “A articulação quadripartite, de instituições com forte poder de mobilização social e de conferir visibilidade às ações implementadas, constitui uma condição básica para a eliminação do problema do trabalho infantil no país, tendo em conta principalmente os inúmeros pactos já celebrados nesse sentido”.

[11] O referido Plano prevê ações para o período 2019-2022. Seu texto foi referendado pelo CONANDA, tendo sido elaborado a partir da avaliação do Plano previsto para o período 2011-2015, que demonstrou a execução de 60% (sessenta por cento) das ações nele previstas.

[12] Mais de dois milhões e quatrocentas mil (PNAD Contínua – IBGE – 2016).