
Segundo a legislação brasileira, é dever do Estado e da família assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Ambos devem também mantê-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A lei deixa bem claro que crianças e adolescentes não devem trabalhar, mas um estudo lançado pela Fundação Abrinq, lançado no dia 10 de outubro, mostra que a média nacional de ocupados entre 5 e 17 anos é de 5%, Sergipe está acima dessa média, com um percentual de 7,2%.
Em Aracaju, por exemplo, as feiras livres são locais onde é comum encontrar crianças trabalhando, normalmente carregando as mercadorias para os clientes ou ajudando outro adulto na venda dos alimentos. Essas crianças, contudo, seguem um mesmo perfil: estudam no turno da manhã e trabalham de tarde.
Em relação ao trabalho infantil, situação em que todos os direitos citados são desrespeitados, a legislação visa a proibição de qualquer tipo de trabalho para adolescentes com menos de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Jovens com menos de 18 anos não devem ser expostos a trabalhos noturnos, insalubres e perigosos.
R.S., 15 anos, trabalha na feira localizada no conjunto Augusto Franco, na zona Sul da capital sergipana. Ele contou que começou a trabalhar na feira há três semanas para ajudar a família. Mesmo estudando e trabalhando, o adolescente afirmou não se sentir cansado.
Na mesma feira, o retrato do trabalho é banalizado, como em tantos outros locais em que crianças são vistas em situação de ocupação. Enquanto a reportagem conversava com M.A, de 14 anos, que trabalha no local há 5, a responsável por uma das bancas da feira, que preferiu não se identificar, afirmou que ele não trabalhava, mas que apenas “ajudava a família”.
Entre o vai e vem de pessoas que transitam por uma das feiras mais movimentadas da cidade, R.M, de apenas 10 anos, quase passa despercebido cortando os corredores. Com um carrinho de mão, ele também usou o argumento da maioria das crianças. “Vim só hoje para ajudar o meu avô”, afirmou em tom desconfiado.
Políticas Públicas
Segundo a coordenadora estadual do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) da Secretaria de Estado da Mulher, Inclusão, Assistência Social, do Trabalho e dos Direitos Humanos (SEIDH), Fátima Luciana, o Estado trabalha nessa causa focando na conscientização da população. “Nós trabalhamos com cinco eixos: informação e mobilização, identificação, proteção social, apoio e monitoramento das crianças que são encontradas em situação de trabalho infantil. O Estado também repassa para os municípios cartilhas, aventais e banners que promovem a conscientização da comunidade a respeito do assunto”, explicou.
A coordenadora informou que as crianças que são encontradas pelos técnicos de referência de cada município são encaminhadas para os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e são inseridos no Serviço de Convivência, junto com sua família, onde são realizadas atividades socioeducativas.
Fátima percebe que, com as campanhas atuais, a comunidade toma conhecimento sobre o assunto. “A comunidade toma conhecimento do que é o trabalho infantil e passa a entender melhor o assunto. Nas cidades do interior as pessoas ainda têm dificuldade em perceber que uma criança ser submetida ao trabalho é errado. Nas feiras livres por exemplo, as pessoas preferem chamar uma criança para carregar o carrinho por ser mais barato”, considerou.
Em Aracaju, as políticas públicas implantadas também seguem o PETI. De acordo com a coordenadora do programa de Aracaju, Lucimeire Amorim, esse trabalho é realizado de forma intersetorial. “Essa questão envolve fatores históricos, socioculturais e econômicos, então não tem como apenas uma secretaria cuidar do assunto. Quem comanda é a Secretaria Municipal da Assistência Social e Cidadania, mas envolvemos as secretarias da Saúde, da Educação, do Trabalho, do Esporte e da Cultura também”, frisou.
Na comissão intersetorial, que foi implantada este ano, são discutidos assuntos referentes ao trabalho infantil e implementadas ações para conscientizar a comunidade sobre o assunto. “Esse ano já realizamos nove ações nas ruas e realizamos também a primeira audiência pública para trabalhar melhor o assunto”, revelou Lucimeire.
A coordenadora demonstrou preocupação com o avanço do conservadorismo relacionado ao assunto. “Foram cerca de quatro anos sem falar no assunto, então, essa questão acabou sendo naturalizada, o conservadorismo prevaleceu e muitas pessoas ainda pensam que é melhor a criança estar trabalhando do que roubando, por exemplo”, observou.
Mapa do Trabalho Infantil
O Mapa do Trabalho Infantil, lançado pela Rede Peteca – chega de trabalho infantil, permite explorar como se dá a mão de obra infantil em cada estado do Brasil, usando como fonte a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015 e a pesquisa “O Trabalho Infantil nos Principais Grupamentos de Atividades Econômicas do Brasil”, elaborada pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil.
Se comparado com a pesquisa da Fundação Abrinq, pode-se considerar uma redução no percentual com relação ao trabalho infantil no estado. Em 2015, segundo o Mapa do Trabalho Infantil, em Sergipe, 9,42% da população de 5 a 17 anos de idade trabalhavam, a maioria (44,9%) na área da agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e aquicultura, seguido da área de comércio e reparação (21,1%), indústria de transformação, extração mineral, petróleo, gás, eletricidade e água (9,5%), administração pública, educação, saúde, serviços sociais, coletivos e pessoais (7,5%), construção (6,8%), serviço de alojamento, alimentação, transportes, financeiros e imobiliários (6,1%) e serviços domésticos (4,1%).
Para o presidente do Fórum Estadual para Erradicação do Trabalho Infantil, Danival Falcão, é preciso muita informação para reverter esse quadro. “Não somente isso, mas com a informação as pessoas conhecem os dados, passam a notificar e exigir a proteção dessas crianças”, afirma.
Jovem Aprendiz
A Lei da Aprendizagem estabelece que toda a empresa de médio e grande porte é obrigada a contratar adolescentes e jovens entre 14 e 24 anos. Trata-se de um contrato especial de trabalho por tempo determinado, de no máximo dois anos, que não comprometa a atividade escolar do jovem.
Danival Falcão também defende a reestruturação e melhoramento do programa Jovem Aprendiz. “Precisamos oferecer um trabalho com proteção, mobilizar o poder público para cobrar que as empresas contratem esses jovens de 14, 15 anos e ofereçam um trabalho digno e dentro das regras, mas essa realidade está muito distante. As empresas contratam os mais velhos, e os jovens ficam sem oportunidade pela falta de experiência. Precisamos focar em quem mais necessita”, considerou.
Danival lembra ainda que nem todas as atividades são adequadas para os jovens. “Eles não devem exercer nenhuma atividade que coloque em risco sua integridade. Existem inúmeros casos que as crianças submetidas a atividades perigosas perderam um dedo, um braço, um membro do corpo e, normalmente, essa criança já está fora da escola, e passa, então, a se enxergar como inferior, sem direitos, como alguém diferente”, ressaltou.
Ele também destacou que os direitos devem ser iguais para todos. “Devemos observar e promover os direitos que são para todos segundo a constituição, promover o resgate, a educação que é um fator muito importante para assegurar a preparação para a vida. A infância e a adolescência são fases curtas das nossas vidas, elas devem ser agradáveis, onde possamos nos preparar para a fase adulta”, salientou.
Lutando por um futuro melhor
Alanna Mangueira, sergipana do município de Santo Amaro das Brotas, milita na área da infância e juventude desde os seus 12 anos de idade. Na luta contra o trabalho infantil, começou a atuar aos 14, representando os adolescentes e jovens do estado através do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil em Sergipe, onde ganhou mais visibilidade. “Logo me indicaram para participar da terceira conferência global sobre trabalho infantil que aconteceu no Brasil em 2013”, contou.
Foi nesse evento que Alana conheceu o indiano Kailash Satyarthi, ganhador do prêmio Nobel da paz por libertar crianças indianas que estavam em situação de trabalho infantil. “Desde 2013 discuto a pauta do trabalho infantil em diversos espaços, realizando inclusive palestras nas escolas, por isso recebi o convite do Kailash Satyarthi, por meio do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, para ser a coordenadora jovem, juntamente com outra jovem, da iniciativa 100 milhões por 100 milhões, aqui no Brasil”, revelou.
A inciativa 100 milhões por 100 milhões é coordenada no Brasil pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com parceria temática do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. O objetivo da campanha, idealizada por Kailash, é mobilizar 100 milhões de pessoas, estimulando especialmente os jovens, para lutar pelos direitos de 100 milhões de crianças que vivem na extrema pobreza, sem acesso à saúde, educação e alimentação, em situação de trabalho infantil e completa insegurança.
Alana começou a lutar pela causa devido a história de seus pais. “Principalmente a do meu pai, que desde muito cedo começou a trabalhar, não teve a oportunidade de ir para a escola e nem pode ser criança porque a demanda de trabalho para ajudar sua mãe era muito grande. Da mesma forma a minha mãe, por ser a mais velha, tinha que cuidar da casa, dos irmãos e depois ir vender mariscos na rua, e só quando voltava é que ia para a escola. Em 2012, em uma conferência municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, em Santo Amaro, eu vi a oportunidade de me engajar na luta para que outras crianças não fossem vítimas da exploração do trabalho infantil e evasão escolar”, relatou.
Há 20 dias, Alana esteve na Índia, representando o Brasil, para participar de uma reunião global de planejamento paras as ações da inciativa em 2018, e também para refletir sobre a importância de seu papel. “Para mim, foi um momento oportuno. Poder compartilhar minha experiência de luta contra o trabalho infantil com jovens ativistas de outros países e entender a importância dessa iniciativa é uma plataforma importante de engajamento da juventude, uma forma de unir pessoas que lutam pela causa, reafirmar a importância da coletividade, que juntos podemos devolver a cada criança o direito de ser criança, e construirmos um mundo sem trabalho infantil, e qualquer forma de violência, com uma educação pública e de qualidade”, afirmou a jovem.