
Foto: Visão Mundial
Na escola, no bairro em que vivem ou em casa, crianças estão sujeitas a presenciarem atos de violência ou serem vítimas deles. Mas, para muitas delas, essas situações não são interpretadas como violência. São naturalizadas, por fazerem parte de seu cotidiano.
O trabalho infantil também é naturalizado. “O trabalho infantil é ainda mais difícil de ser percebido como uma violência prejudicial ao desenvolvimento infantil por não se apresentar como violência direta. E, o que é pior, ainda é entendido como algo benéfico. Neste sentido, requer ainda mais esforços em ações de formação e sensibilização", explica a assessora de Proteção à Infância da Visão Mundial Brasil, Karina Lira.
É o que aponta a pesquisa “O que dizem as crianças?”, realizada pela ONG Visão Mundial em parceria com o Instituto Igarapé (clique aqui para saber mais). O estudo inovou ao entrevistar crianças e adolescentes, em vez de se embasar somente em dados sobre violência.
De acordo com o estudo, “a falta de dados subjetivos sobre como a violência afeta o dia a dia das crianças e adolescentes dificulta a implantação de ações e políticas de apoio e prevenção à violência no Brasil”.
Participaram 1.404 meninos e meninas moradores de comunidades onde a Visão Mundial atua. A maioria, 68%, das crianças e adolescentes entrevistados se sentem seguros, apesar de relatarem, ao longo da pesquisa, vivenciarem ou presenciarem situações de insegurança.
O FNPETI conversou com Karina Lira sobre a pesquisa. Confira:
Quais os possíveis desdobramentos na vida/desenvolvimento da criança e adolescente da normatização da violência?
Karina: 68% das crianças e adolescentes se sentem seguras. Esse resultado foi central na pesquisa. Apesar de sofrerem violência física em casa, de presenciarem conflitos nas escolas e de conviverem em contextos socioeconômicos bastante difíceis, a maioria delas relatam sentir-se seguras.
Demonstram assim que as crianças e adolescentes não percebem um alto nível de insegurança que eles vivem. Isso acontece em parte pelo seu desenvolvimento (crianças pequenas tem menor capacidade de fazer uma leitura crítica da realidade) e, principalmente pela “normatização da violência”. A violência está tão impregnada no cotidiano dessas crianças e adolescentes que se torna algo banal e naturalizado.
Quanto ao impacto disso, se as crianças e adolescentes que sofrem a violência a entendem como algo “aceitável”, tende-se a perpetuar o silêncio por parte da vítima, que leva a reincidência da violência sofrida. Ocorre também a impunidade por parte do agressor, que continuará cometendo crimes sem nenhum temor de ser responsabilizado.
A exposição às diferentes formas de violências afetam o bem-estar e pode prejudicar a autoconfiança e segurança das crianças e adolescentes, comprometendo o seu desenvolvimento mental, psicológico e social, trazendo impacto duradouro na sua vida. Essa ameaça corrói seu potencial para contribuir com o desenvolvimento de sociedades saudáveis e produtivas.
Sobre o trabalho infantil, 58% dos entrevistados consideraram sempre muito errado que pessoas com menos de 14 anos façam alguma atividade para ganhar dinheiro; 28% fiquem em casa para tomar conta dos irmãos mais novos; 19% façam tarefa doméstica enquanto os pais trabalham. Qual a sua avaliação sobre essas respostas? Também há uma naturalização do trabalho infantil? É uma questão cultural? O que pode ser feito para mudar essa percepção?
Karina: Dentre as formas de violências apresentadas, as relacionadas ao trabalho infantil foram as que apresentaram menor percepção por parte das crianças e adolescentes como algo sempre errado.
Existe uma naturalização em relação ao trabalho infantil, mais ainda que as outras formas de violência. A criança está inserida na sociedade, ela percebe as coisas também como as pessoas ao seu redor.
O trabalho infantil é ainda mais difícil de ser percebido como uma violência prejudicial ao desenvolvimento infantil por não se apresentar como violência direta. E, o que é pior, é entendido como algo benéfico que desenvolve habilidades nas crianças e adolescentes. Neste sentido, requer ainda mais esforços no trabalho de formação e sensibilização.
Esta consulta apresenta a necessidade de se criar uma contracultura à violência, de uma mudança de mentalidade em favor da proteção da infância. É preciso fazer isso considerando a formação sociopolítica da própria criança e do adolescente para que eles possam se proteger, como um dos caminhos para romper esse ciclo vicioso de violência.
É preciso o preparo das famílias para atuarem na proteção de suas crianças. É no âmbito do lar que este problema começa e é também lá que reside parte da solução. Famílias mais preparadas também poderão revisar as próprias ações que estejam incorrendo na violação de direitos.
As famílias têm papel ativo na educação e proteção de suas crianças. Com o devido apoio, elas podem promover em suas crianças e adolescentes o desenvolvimento de habilidades de proteção, bem como prover a estrutura de apego e apoio necessária à superação de problemas e ao desenvolvimento de tais habilidades.
É realmente necessário construir estratégias e soluções que requerem o envolvimento e compromisso de todas as instituições da rede de proteção. Embora ela atinja fortemente o bem-estar e dignidade das crianças, adolescentes e jovens, a violência tem impacto em toda a sociedade. Todos precisam se importar com isso.
Como o estudo vai contribuir para as ações da ONG nessas localidades?
Karina: Estamos preparando a devolutiva dos resultados para todas as comunidades onde fizemos a pesquisa, com o objetivo de chamar a atenção do governo, da universidade, das empresas e sociedade civil para que esses atores se sensibilizem e promovam programas e políticas públicas intersetoriais para combater o alto índice de violência contra as crianças, jovens e adolescentes.
Os dados também serviram de subsídio para o planejamento dos programas desenvolvidos juntos aos parceiros de Visão Mundial nessas localidades.
Quem tiver interesse em acessar o aplicativo e realizar pesquisas com o índice de segurança da criança, como deve proceder?
Karina: A Visão Mundial possui ferramentas de pesquisa de percepção de crianças e adolescentes sobre proteção. Mas se a instituição deseja desenvolver a pesquisa via aplicativo do índice de segurança precisa entrar em contato com o Instituto Igarapé.