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O Enfrentamento ao Trabalho Infantil no contexto da COVID-19

Definitivamente o mundo vive um momento histórico e trágico com a pandemia da COVID-19. Os impactos já são evidentes em várias dimensões da vida social, política, econômica e cultural em escala global. No Brasil, as restrições e recomendações de isolamento social afetam a vida das pessoas de diferentes formas e escancaram a desigualdade e a exclusão social, a fragilidade das políticas públicas e a morosidade do governo federal na adoção de medidas que garantam o direito fundamental à vida e a proteção social de seus cidadãos.

 

Há que se destacar o apoio irrestrito às medidas de isolamento social de uma parcela significativa da sociedade para conter a propagação do coronavírus. Entretanto, é fundamental uma reflexão mais profunda sobre os impactos da pandemia na vida das crianças e adolescentes para que medidas emergenciais de proteção sejam imediatamente tomadas, uma vez que neste cenário caótico e sem precedentes são estes os sujeitos sociais mais vulneráveis. 

 

No que se refere ao trabalho infantil, o isolamento social inegavelmente necessário, também traz desafios para todos os atores sociais e políticos do Sistema de Garantia de Direitos, considerando que é na desigualdade social, nas altas taxas de desemprego, na pobreza e na exclusão escolar que se encontram as raízes do trabalho infantil. Os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil no Brasil, o que representa 6% da população (40,1 milhões) nesta faixa etária (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016)  Neste contexto, duas questões centrais estão colocadas: como garantir a proteção de milhões de crianças e adolescentes que estão em situação de trabalho infantil e como prevenir o possível aumento desta violação de direitos humanos no país?

 

Toda e qualquer resposta a essas perguntas deve, necessariamente, levar em conta que:

 

  • O Brasil é o segundo país com a maior concentração de renda do mundo e é o sétimo em desigualdade social, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano 2019 da Organização das Nações Unidas (ONU)[1]. O documento destaca que “as sociedades mais desiguais são menos efetivas na redução da pobreza do que aquelas com menores níveis de desigualdade. Elas também crescem mais lentamente e têm menos sucesso no que se refere a um desenvolvimento econômico sustentável”;
  • Segundo dados da Pesquisa “A Escalada da Desigualdade – Qual foi o Impacto da Crise sobre a Distribuição de Renda e Pobreza?”[2], divulgada em agosto de 2019 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a parcela de 10% dos mais ricos no Brasil concentra 41,9% da renda no país enquanto 1% fica com 28,3% da renda. A pesquisa da FGV destaca ainda que há quatro anos persiste o aumento consecutivo da desigualdade no país;   
  • Em 2018, o Brasil tinha 13,5 milhões de pessoas na pobreza extrema (6,5% da população vivendo com menos de R$ 145 mensais), de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais 2019 do IBGE.  Ainda de acordo com o estudo, 52,5 milhões de brasileiros e brasileiras viviam na linha de pobreza em 2018, ou seja, ganhavam menos de R$ 420 per capita por mês;
  • No que se refere às taxas de desemprego no país, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou recentemente que o Brasil fechou 2019 com uma taxa de desemprego de 12,1% e destacou que não há no horizonte expectativa de melhoria acelerada deste índice; 
  • Com relação à educação, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PnadC 2017), mostrou que ainda há no Brasil 1,9 milhão de crianças e adolescentes fora da escola. A exclusão escolar afeta principalmente meninos e meninas das camadas mais vulneráveis da população, já privados de outros direitos constitucionais. Apresentados como potenciais “hospedeiros” e propagadores do coronavírus, de um dia para o outro, meninos e meninas do mundo todo foram tirados de seu ambiente privilegiado de interação social e aprendizado, as escolas. Segundo levantamento feito pela Organização das Nações Unidas (ONU), aproximadamente 87% (mais de 1,5 bilhão) dos estudantes de 165 países estão, neste momento, fora da escola, e este percentual não para de aumentar[3]. Na América Latina e no Caribe, o UNICEF aponta que mais de 154 milhões de crianças e adolescentes (mais ou menos 95% dos estudantes da região) foram afetados. No Brasil, estima-se que boa parte dos 48,4 milhões de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas e privadas (Censo 2018) também estejam na mesma situação. Há que se ter em conta que uma das causas da exclusão escolar é o trabalho infantil e que em um cenário de escolas fechadas por tempo prolongado a possibilidade de que muitas crianças e adolescentes não voltem para as salas de aula é grande;
  • Por fim, ainda há uma naturalização do trabalho infantil por parcela significativa da sociedade brasileira, especialmente nos setores do trabalho informal e da agricultura. É importante destacar que aqueles que defendem o trabalho infantil o fazem para as crianças e os adolescentes brasileiros de famílias pobres, pretas ou pardas. O que evidencia que o trabalho infantil tem classe social e cor. É fato que as argumentações favoráveis ao trabalho infantil (diga-se de passagem, para as crianças e os adolescentes pobres) encontram terreno fértil em períodos de recessão econômica, situação já anunciada por organismos internacionais e nacionais.

 

O cenário brasileiro já tinha desafios consideráveis para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes, especialmente para a eliminação do trabalho infantil, entretanto, na nova realidade que se apresenta, estes desafios ganham proporções dantescas.  Tentar mensurar os impactos resultantes da pandemia no combate ao trabalho infantil é um exercício de futurologia, entretanto, é uma preocupação real visto que as conjunturas econômica, política, cultural e social indicam que as condições determinantes para o trabalho infantil estarão ainda mais presentes na sociedade brasileira, resultantes do novo cenário pós-pandemia que se avizinha.

 

Se por um lado, o combate à COVID-19 exige dos governos federal, estaduais e municipais um conjunto de iniciativas e recursos orçamentários, por outro lado, nenhuma ação do Estado brasileiro pode desconsiderar a proteção integral e a prioridade absoluta à criança e ao adolescente, previstas na Constituição Federal de 1988. 

 

A partir deste pressuposto, e considerando a pandemia da COVID-19, é urgente a articulação de esforços dos três níveis de governo (federal, estadual e municipal) e das entidades comprometidas com uma infância sem trabalho para a realização de ações integradas em todo o território brasileiro, dentre elas:

 

  • Incidência política forte no Legislativo, Executivo e Judiciário locais para que as ações de enfrentamento à COVID-19 contemplem as crianças e os adolescentes no trabalho infantil e os adolescentes em Aprendizagem Profissional;
  • Adoção urgente de uma política de renda básica universal para as famílias em situação de vulnerabilidade social;
  • Fortalecimento das políticas de alimentação escolar nos Estados e municípios como forma de garantir a segurança alimentar e nutricional das crianças, adolescentes e suas famílias. Dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) indicam que aproximadamente 85 milhões de crianças e adolescentes na América Latina e Caribe se beneficiam desses programas. É importante destacar ainda que em muitos casos, a alimentação escolar é uma das principais ou a única fonte garantida de alimentação diária para cerca de 10 milhões de crianças e adolescentes no mundo. Segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos (DIEESE)[4], no Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é estratégico no enfrentamento à pandemia da COVID-19, pois permite que milhões de famílias tenham garantido o acesso à alimentação saudável e diversificada e, ao mesmo tempo, cria condições para que os agricultores familiares brasileiros possam enfrentar a adversidade da crise, garantindo a renda necessária para o sustento das famílias e a produção de alimentos da Agricultura Familiar;
  • Ampliação da abrangência e do acesso às políticas de proteção social para as famílias em situação de vulnerabilidade social;
  • Implementação de iniciativas governamentais de distribuição de alimentos, de isenção de impostos e garantia de renda aos trabalhadores, especialmente aqueles no setor informal;
  • Ampla divulgação dos canais de denúncia para o encaminhamento destas aos órgãos competentes em âmbito nacional, estadual e municipal. É fundamental verificar se realmente os canais de denúncias estão funcionando e se os fluxos de encaminhamento aos órgãos competentes estão efetivamente ocorrendo para que a proteção e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes sejam garantidas. Os conselhos tutelares, os conselhos de direitos, o Ministério Público do Trabalho, as defensorias públicas e a inspeção do trabalho fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos e têm papel fundamental no combate às violências contra crianças e adolescentes, incluindo o trabalho infantil;
  • Monitoramento das notificações compulsórias de acidentes de trabalho de crianças e adolescentes pelos órgãos de saúde.

 

Embora a pandemia da COVID-19 seja o item prioritário da agenda política internacional e nacional, é compromisso de todos que defendem e promovem o direito a uma infância sem trabalho e a uma adolescência com trabalho protegido (se esta for a opção dos adolescentes acima de 14 anos) realizar o debate de forma mais ampla, não só a partir da perspectiva da saúde pública, mas também a partir dos impactos negativos na vida de milhões de crianças e adolescentes no trabalho infantil e suas famílias.

 

Neste sentido, vale destacar que a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou por unanimidade uma resolução declarando 2021 como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil como forma de estimular os países a se mobilizarem para o alcance da meta 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que trata da eliminação de todas as formas de trabalho infantil até 2025. 

 

Ciente de seu papel articulador e mobilizador da Rede Nacional de Combate ao Trabalho Infantil, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil recomenda fortemente que os fóruns estaduais, o fórum distrital e as entidades nacionais que compõem a Rede:

 

  • Realizem reuniões virtuais para fortalecer ou iniciar uma articulação com conselhos tutelares, conselhos de direitos, representações de empregadores, trabalhadores, organizações da sociedade civil e do sistema de justiça para juntos definirem ações emergenciais no contexto da pandemia da COVID-19 em seus Estados;
  • Verifiquem a efetividade dos canais de denúncia de seus Estados e municípios e caso estes estejam funcionando efetivamente, divulguem amplamente;
  • Divulguem amplamente os procedimentos para inserção das famílias em situação de vulnerabilidade no Cadastro Único para que possam ser contempladas pelas políticas públicas de proteção social.

 

A Rede Nacional de Combate ao Trabalho Infantil tem capilaridade nacional e por agregar diferentes organizações já provou que faz a diferença. Neste momento de incertezas e angústias, para seguirmos na luta contra o trabalho infantil, tomemos como incentivo as palavras de João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas):

 

“(...) O correr da vida embrulha tudo,

 

A vida é assim: esquenta e esfria,

 

Aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.

 

O que ela quer da gente é coragem”