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Redefinindo a civilização no mundo pós-Covid-19

Durante e após as catástrofes, crises e guerras, o modo de vida coletivo dos cidadãos é fortemente afetado. No mundo interconectado de hoje, o Covid-19 não é apenas uma crise de saúde, econômica ou humanitária. É também uma crise da civilização. As civilizações evoluem como resultado de uma resposta coletiva a eventos históricos e mudanças na ecologia humana e, apesar das diferenças, possuem alguns elementos de natureza universal. Nas últimas décadas, a globalização e os avanços sem precedentes em comunicação e tecnologia aumentaram ainda mais os pontos em comum da civilização humana.

A pandemia em curso tem o potencial de enfraquecer a fundação e o próprio tecido de nossa civilização. Isso pode alterar não apenas a maneira como vivemos e trabalhamos, mas também afeta profundamente nossos relacionamentos interpessoais, nossos valores essenciais e a natureza do estado e da governança.

Enquanto escrevo isso, sou assombrado por imagens horríveis de dedos desmembrados segurando os últimos pedaços de rotis (tipo de pão indiano), pertencentes a 16 trabalhadores migrantes que se deitaram para descansar em trilhos de trem durante sua longa caminhada para casa, apenas para serem atropelados por um trem, em Aurangabad. Eles estavam entre alguns dos milhões de homens, mulheres e crianças que andam nas estradas, desesperados para retornar às suas aldeias sem qualquer meio de transporte disponível. Também não consigo esquecer Cheng, 16 anos, morador de Hubei, China. Vivendo com uma forma extrema de paralisia cerebral, Yan Cheng morreu sozinho quando seu pai foi levado embora após contrair o Covid-19.

 

Da mesma forma, centenas de crianças trabalhadoras foram encontradas abandonadas em perigosas minas de ouro na África do Sul, cujos empregadores fugiram para se manterem em segurança. Também na Índia, minha organização, juntamente com as autoridades, continua resgatando e ajudando crianças trabalhadoras que foram trancadas e deixadas para morrer. Bairros após bairros de assalariados diários e de imigrantes em grandes cidades da Índia, Brasil, Nigéria, Tailândia e muitos outros lugares estão sendo abandonados, resultando em desequilíbrios demográficos.

Por outro lado, as pessoas que estão seguras, mas forçadas a ficar em ambientes fechados, estão assustadas e enfrentam uma infinidade de problemas mentais, como depressão e ansiedade. Há ampla evidência de um aumento na discórdia e violência doméstica. Há também um aumento terrível no abuso sexual infantil e na pornografia infantil. É preocupante ver nossos filhos enfrentando muitos problemas psicossociais, como raiva, ansiedade, solidão, perda de motivação e foco. As telas de telefone e televisão não substituem interações sociais significativas e atividade física.

Essas são algumas indicações de uma crise da civilização, mas existem outros fatores cruciais em ação. O coletivismo é a base de qualquer civilização. Pensamentos coletivos, experiências, ações, crenças, percepções e tradições contribuem para a construção de uma civilização. Esforços para sustentação e sobrevivência, uma busca pela liberdade, uma busca pelo conhecimento do desconhecido, uma busca pela felicidade e um desejo de criar e inovar também estão entre os principais propulsores de uma civilização. Eles se manifestam na criação de linguagem, arte, escultura, habitat e ajudam a definir cidadania e governança. Portanto, as civilizações não são construídas apenas através do conhecimento, sabedoria e inteligência, mas também são o resultado de uma riqueza de emoções humanas compartilhadas. A resposta do Estado ao combate à pandemia, revivendo a economia e protegendo a lei e a ordem são importantes. No entanto, igualmente importante é a resposta emocional ao lidar com os mais vulneráveis.

Por que milhões de trabalhadores migrantes se sentem tão impotentes e com medo que estão literalmente fugindo das cidades onde estão suas casas, percebidas como local de segurança? É apenas o medo do Covid-19? Eu acredito que eles perderam a fé no mundo civilizado da cidade que eles confiaram como sua subsistência, incluindo os empregadores e o estado.

A pandemia expôs e aprofundou, talvez as disparidades emocionais sempre existentes entre os criadores da infraestrutura de nossa civilização e seus guardiões de elite. Além disso, destaca as diferenças de percepção e a grave dissonância cognitiva. Houve discriminação social flagrante e divisões visíveis com base em religião, casta, gênero e raça, mesmo entre os esforços de ajuda para combater o Covid-19. Existem muitos perigos e ameaças à nossa civilização.

Primeiro, nesta crise, as enormes desigualdades de renda existentes, baseadas em um sistema econômico focado na obtenção de lucro e na criação de riqueza, serão exacerbadas. Isso marginalizará ainda mais e privará as partes vulneráveis da sociedade, levando-as à pobreza crônica, fome e privação.

A crescente dependência da tecnologia moderna, reduzirá cada vez mais trabalhadores à passivos. Isso resultará não apenas de maneira dramática em demissões em massa, mas também em aumento da demanda e no valor de recursos humanos altamente especializados e produtivos. Obviamente, essa classe pequena emergirá como os novos brâmanes, lançando uma seção maior 'improdutiva', ou seja, idosos, sem instrução, deficientes e outros.

Isso poderia levar a um aumento do extremismo, escalada de tensões entre diferentes setores da sociedade, violência e crimes que afetam nosso modo de vida. Medidas avançadas de segurança, vigilância robusta e policiamento se tornarão o novo normal. Isso também pode levar à discriminação e perfil de criminosos com base na religião, casta e cor, nos dividindo ainda mais.

Em segundo lugar, a política divisória baseada no populismo, no ódio, no individualismo, no protecionismo e no hipernacionalismo já danificou os fundamentos da inclusão e do coletivismo. A liderança existente de diferentes países pode se tornar ainda mais poderosa agora. Certas decisões tomadas pelos líderes por interesse e segurança públicos podem acabar violando os direitos e a liberdade de indivíduos e cidadãos, resultando em mais negligência dos menos favorecidos. Paradoxalmente, instabilidade política maciça, caos e até anarquia também podem surgir em países com liderança indecisa.

Após a revolução industrial, nossa civilização evoluiu significativamente. A luta pela democracia, liberdade, proteção dos direitos humanos e esforços para o desenvolvimento inclusivo foram todos passos na direção certa. Dada a situação atual, podemos acabar comprometendo esses esforços e deixar de proteger a democracia, os direitos humanos e a justiça social para todos. Isso contribuirá para uma crise para a nossa civilização.

 


Terceiro, o nexo entre o Estado e as empresas é tão profundo que os que estão no poder veem tudo através de uma lente econômica. As condições criadas pelo Covid-19 estão permitindo que eles visualizem reformas trabalhistas e industriais com a máxima lucrativa, sob o vestuário de emendas legais. Isso significa essencialmente que os trabalhadores perdem seu poder de negociação coletiva. A maneira mais fácil de fazer isso seria forçá-los a entrar nos setores não regulamentados e desorganizados, substituindo os processos formais de produção e as cadeias de suprimentos desreguladas. Isso também será feito para atrair investidores estrangeiros.

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Não devemos esquecer que o papel da classe trabalhadora ao longo da história não foi apenas a produção industrial e a prestação de serviços através da venda de seu trabalho manual e mental, mas desde então contribuíram imensamente para estabelecer e fortalecer a democracia, a liberdade e a eqüidade de gênero. O mundo pós-Covid-19 pode destruir esse progresso conquistado com muito esforço ao longo de muitos séculos e contribuir ainda mais para a crise da civilização.

Quarto, os princípios e normas de moralidade e ética de qualquer civilização são esculpidos por um longo período de tempo. Eles não são necessariamente aplicáveis em todos os lugares e em todos os momentos. No entanto, alguns valores centrais atuam como a bússola moral ao longo da civilização. Já experimentamos um déficit moral há algum tempo. Agora, as forças combinadas de mídia, tecnologia e mercados constroem e estabelecem figuras moralistas para seus próprios interesses políticos e econômicos. Essas forças podem emergir mais fortes e enfraquecer ainda mais os valores morais universais que ajudam a sustentar a civilização humana.

Em quinto lugar, o mundo pós-Covid-19 se tornará inimaginavelmente digital e virtual. Durante o bloqueio, centenas de milhões de pessoas em todos os países são forçadas a trabalhar em casa, enquanto seus filhos precisam fazer aulas on-line. Isso se tornará o novo normal para a maioria de nós, abandonando lugares de socialização e interação humana. Os relacionamentos criados pelas mídias sociais são amplamente superficiais e nunca podem substituir a profundidade das conexões humanas.

Além disso, a Inteligência Artificial, a Internet das Coisas e a tecnologia ainda a ser inventada controlarão a educação, a saúde, o governo e as empresas, deixando professores, médicos, padres e mentores cada vez mais irrelevantes. Interações físicas, bem como compartilhar sentimentos de excitação, amor, alegria, raiva, frustração e tristeza com nossos entes queridos, são vitais para a existência humana e para a formação de uma sociedade. Esta situação pode causar sérios danos à nossa civilização.

No entanto, desafios e incertezas também pavimentam o caminho para soluções inovadoras. O cenário atual não é diferente e certamente pode ser transformado em uma oportunidade para fortalecer nossa civilização.

Tenho uma abordagem em quatro níveis que pode nos ajudar a lidar com os desafios acima. Meu pensamento é baseado em quatro elementos - Compaixão, Gratidão, Responsabilidade e Tolerância. Não estou propondo nada de novo aqui. Todos esses elementos já estão presentes e estão enraizados como valores humanos básicos em culturas e religiões. A conquista da liberdade, dignidade, justiça, igualdade, sustentabilidade e paz deve ser o objetivo principal de nossa civilização. Estes não são apenas ideais e princípios, mas são realidades alcançáveis.

Continuo enfatizando que, a menos que sintamos a dor e o sofrimento dos outros como nossos e façamos esforços para aliviá-los, uma sociedade verdadeiramente civilizada não poderá ser criada. Isso é compaixão. Essa compaixão deve ser a espinha dorsal de nossas vidas políticas, econômicas, religiosas e sociais. Para salvar nosso planeta, essa compaixão deve ser estendida a animais, pássaros, árvores, rios, oceanos, montanhas e desertos também. É por isso que eu defendo fortemente a globalização da compaixão.

 

O autor é um Prêmio Nobel da Paz.

 

Tradução: Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação; é integrante do Comitê Gestor da plataforma Cada Criança, braço da iniciativa global liderada pelo Nobel da Paz, Kailash Satyarthi, 100 Milhões por 100 Milhões; e é mestranda em Ciências pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.