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A luta contra o trabalho infantil é uma agenda global

Foto: Pixabay
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Por Maria Cláudia Mello Falcão*

Em 2002, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estabeleceu o dia 12 de junho como o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, com o intuito de mobilizar a sociedade e os países para esse grave problema, chamando a todos e todas para contribuir com sua eliminação imediata. Nessa data, são realizados milhares de eventos de sensibilização em dezenas de países, buscando pôr fim a essa violação de direitos. 

O Brasil é pioneiro e referência na comunidade internacional no que se refere aos esforços para a prevenção e eliminação do trabalho infantil. Desde meados da década de 1990, o país assumiu oficialmente a existência do problema e declarou sua disposição de enfrentá-lo. A partir daí, o Governo brasileiro juntamente com trabalhadores, empregadores e sociedade civil vem implantando as disposições da OIT que constam na Convenção nº 138 (que estabelece a idade mínima de admissão ao trabalho e/ou emprego) e na Convenção nº 182 (que trata das piores formas de trabalho infantil), por meio dos instrumentos legais nacionais, além do desenvolvimento de políticas públicas específicas para a prevenção e eliminação do trabalho infantil.

As organizações de empregadores, trabalhadores e da sociedade civil aliaram-se ao esforço do Governo brasileiro, contribuindo de forma sensível para o sucesso das ações de sensibilização, de mobilização pública e de controle social. Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2016 do IBGE, constata-se que, como resultado desse amplo empenho nacional, houve uma redução de 58% entre 1992 e 2016 no número de meninos e meninas entre cinco e 17 anos ocupados/as. Isso significa que em 2016 havia 4.905.000 crianças a menos envolvidas no trabalho infantil do que em 1992. Apesar destes avanços, ainda existem no Brasil cerca de 2,4 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos trabalhando. Esses meninos e meninas encontram-se desempenhando funções na agricultura, na pecuária, no comércio, nos domicílios, nas ruas, na construção civil, entre outras situações. Vale ressaltar que segundo a legislação brasileira, pessoas na faixa entre 14 e 15 anos de idade podem trabalhar, desde que seja com contrato especial de Aprendiz Profissional . Entretanto, 89,5% dos adolescentes dessa faixa etária que trabalhavam em 2016 não tinham carteira de trabalho assinada. Esse dado reforça a hipótese de que a maioria desses jovens ocupados possivelmente encontrava-se em situação irregular de trabalho.

A persistência do trabalho infantil está enraizada, principalmente, na pobreza, na falta de oportunidades de trabalho decente para os adultos, na falta de proteção social e na incapacidade de assegurar que todas as crianças e adolescentes estejam frequentando a escola até a idade mínima para admissão ao emprego (14 anos de idade). Soma-se a este problema, o fator cultural amplamente propagado na sociedade que insiste em afirmar que ‘trabalhar é melhor que roubar ou estar na rua’, como se somente houvesse essas duas possibilidades. Muito pelo contrário, é fundamental conscientizar a população de que o lugar dos meninos e meninas do Brasil e do mundo é na escola, local no qual devem ter a oportunidade de desenvolver aquelas potencialidades e habilidades que afloram somente durante os anos iniciais da vida de uma pessoa. Caso este desenvolvimento não ocorra no período adequado, torna-se muito difícil superar essa brecha de formação durante a vida adulta. Além disso, pessoas que começaram a trabalhar desde muito cedo tendem a ser aquelas com menos anos formais completos de estudo, ou seja, quanto mais tardia a idade do primeiro trabalho, maior a probabilidade de permanecer mais tempo na escola. 

Uma maior e melhor escolaridade, por sua vez, abre o caminho para uma melhor qualidade em termos de inserção laboral. De fato, a maioria das pessoas que possuem carteira assinada são aquelas que tiveram uma entrada mais tardia no mercado de trabalho. Obviamente, a trajetória se traduz em rendimentos mais elevados para aqueles/as que começaram a trabalhar mais tarde vis a vis o trabalho precoce. Sendo assim, não há dúvidas do poder da educação na promoção do trabalho decente e na sustentabilidade da erradicação do trabalho infantil. Somente por meio da educação será possível alcançar os níveis de desenvolvimento esperados e a garantia dos direitos a todas crianças e adolescentes. 

Em 2019, a OIT comemora 100 anos de atuação na promoção da justiça social e do trabalho decente. Desde a sua fundação em 1919, a proteção das crianças e adolescentes faz parte da Constituição da OIT (Preâmbulo) e uma das primeiras Convenções adotadas foi a nº 5 de 1919, sobre a idade mínima de admissão nos trabalhos industriais. Isso demonstra que há cem anos já existia na OIT a preocupação com a proteção das crianças e adolescentes e com a necessidade de erradicar o trabalho infantil, considerado prejudicial ao desenvolvimento de suas potencialidades. Entretanto, ao mesmo tempo em que ressalta a importância que a OIT dá ao tema, desperta um desapontamento o fato de que, mesmo após 100 anos de luta, ainda não fomos capazes de eliminar o trabalho infantil no Brasil (um dos países fundadores) e no mundo. Neste ano completam-se também 20 anos desde a adoção da Convenção nº 182 (sobre as piores formas de trabalho infantil), ratificada no Brasil pelo Decreto nº 3.597/2000. Esta convenção é a mais ratificada de toda a história, o que demonstra a elevada importância do tema mundialmente. 

Neste Dia Mundial, vale lembrar também o compromisso estabelecido por todos os países membros das Nações Unidas de alcançar a Meta 8.7 do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, que visa o fim do trabalho infantil em todas as suas formas até 2025. A inclusão dessa meta na Agenda 2030 reforça que, além de ser uma violação aos direitos humanos, o trabalho infantil representa uma antítese do trabalho decente, configurando um freio ao desenvolvimento humano e das nações. Não há desenvolvimento sustentável enquanto houver persistência do trabalho infantil.

Porém, o que fazer para alcançar essa desafiante meta quando apenas nos restam 6 anos? Fundamentalmente, faz-se necessário garantir a correta implementação da legislação vigente, fortalecer a fiscalização do trabalho para que ela possa alcançar os lugares mais distantes e, também, incentivar as políticas de geração de emprego e renda para que os membros familiares em idade permitida para o trabalho, incluindo os adolescentes acima de 14 anos, possam ter acesso a oportunidades de trabalho decente. Como discutido acima, o Brasil tem um enorme potencial ocioso para oferecer vagas de aprendizagem, o que pode garantir que mais jovens possam ter uma primeira inserção no mundo do trabalho de maneira formal. Adicionalmente, é urgente garantir uma educação de qualidade e acesso à programas de proteção social, para que as famílias em situação de pobreza possam viver com dignidade. 

No Brasil, a mobilização desse ano também faz parte da celebração dos 25 anos do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) que, juntamente com as instituições que o compõem, coordena a campanha do dia 12 de junho no país. O objetivo da campanha, em 2019 é sensibilizar e motivar uma reflexão da sociedade sobre as consequências do trabalho infantil e a importância de garantir às crianças e aos adolescentes o direito de brincar, estudar e sonhar, vivências que são próprias da infância e que contribuem decisivamente para o seu desenvolvimento.

Num cenário onde faltam vagas de emprego e a recuperação econômica continua sendo um grande desafio, as crianças e adolescentes representam a parcela da população mais suscetível a todo tipo de vulnerabilidades. Por essa razão, temos a obrigação de tratar as crianças e adolescentes com absoluta prioridade. Não há razões que justifiquem o trabalho infantil. O objetivo de erradicar e prevenir este fenômeno foi estabelecido há cem anos! 

Por fim, ainda no contexto do centenário da OIT, o chamado futuro do trabalho se encontra no centro do debate, em razão da necessidade de formar pessoas mais qualificadas, uma vez que a demanda para preenchimento de postos de trabalho vinculados à tecnologia e automação aumenta a cada dia. Desta maneira, fica a pergunta: como imaginar um futuro do trabalho favorável, quando mais de 2 milhões de crianças e adolescentes no Brasil sofrem as mazelas impostas pelo trabalho infantil, impedindo-os de obter a qualificação necessária para acessar o mercado de trabalho do futuro? Se continuarmos por este caminho, o futuro do trabalho que nos aguarda será calcado pela baixa produtividade e desenvolvimento econômico e pelo aumento das desigualdades sociais.  


*Maria Cláudia Mello Falcão é coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O artigo foi publicado no dia 12 de junho de 2019, no jornal Correio Braziliense.
 

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